olho

Acordo cedo todos os dias desde que minha rotina presente e noturna me obriga pela repulsa e ansiedade, a correr para o banheiro na intenção de tomar uma banho, e tentar lavar de mim a sensação de sujeira que impregna meu corpo, minha mente, cada osso, tendão, músculos e sangue que existem no meu interior, além, é claro, da minha alma, tentando corroer como ácido o pouco que ainda existe desta. Deixar a pele limpa é fácil, cheirando a rosas, limpar a carcaça de dentro é árduo, cansativo, triste e quase impossível, nem se eu tomasse cândida resolveria, já que existem lugares dentro que esta não tem poder de alcançar, nada e ninguém têm, talvez, somente talvez, eu tenha.

Mas, hoje não. Hoje não levantei cedo e mais, fiquei na cama, porém não antes de nua como vim ao mundo dar um “salto” de minha queen size para abrir ansiosa o janelão de meu quarto no desejo incontido de ver a vista. E, me surpreendi, a cidade está linda. O brilho do sol transpassando os prédios ao redor por cima destes e pelos espaços vazios entre um e outro edifício, inundando minha pele com seus raios diurnos me dão vida e colocam no meu rosto um sorriso bobo, hoje eu entendo o significado da frase “o mundo ganhou mais cor quando você entrou em minha vida”, e não só cor, mas contornos e formas diferentes, é meloso dizer, mas como meu diário não me julga falo mesmo assim, as cores sempre avermelhadas, em tons de rosa, cores quentes, amorosas, convidativas, os contornos são vivos e bem marcados e as formas, ah, as formas, em tudo eu vejo corações.

Eu voltei para a cama, se eu pudesse não sairia mais de lá. Algo mais estava diferente. Enquanto penso tudo isto olhando a paisagem com as mãos segurando as cortinas abertas, sinto meus mamilos endurecerem, e um rubor tomar conta das minhas bochechas e um intenso ardor me consumir por dentro. Eu olhei para trás e a visão é magnifica: debaixo dos lençóis brancos floridos de girassóis, lá está ele, o primeiro homem que em anos passa a noite comigo sem pressa, sem celulares tocando com ligações de esposas desconfiadas que vivem com maridos traidores. Ou, sem sair na madrugada após algumas horas de gemidos falsos emitidos por mim e, como sempre, juras de amor não mais reais do que uma nota de três reais. Victor é diferente, não pagou, não me convidou para um programa bêbado de uma noitada amarga em um bar por que brigou com a namorada e precisa “dar o troco”. Não, ele não é assim, e eu me apaixonei.

Sabe quando dizemos para alguém que nos paquera e que já quer nos levar pra cama “ao menos poderia nos pagar um café”? Então, Victor não me pagou café algum, muito mais que isto, ele me deu algo impagável, ele me deu esperança. Esperança de que eu, eu mesma, prostituta de ofício, posso ser amada como mulher que sou, amada como todo ser humano é digno de ser amado. Um tapa na fuça da sociedade que “ama” ajustados e seus homens e mulheres engomados em terninhos, saias abaixo do joelho e carros do ano. E, para minha surpresa “os presentes” dele não pararam por aí, o amor foi só uma consequência de outros regalos anteriores, como confiança, compreensão. E assim como você caro Diário pode estar se perguntando, como eu também me perguntei a todo instante enquanto caminhava sem compromisso pelas ruas do centro com ele, numa constante que me martelava o juízo, “e quando ele souber quem você é?”, “e quando ele descobrir que você é uma rameira que se vende por uns trocados se deitando com tantos homens que já não tem nem como contar quantos passaram por sua vagina e outros orifícios de seu corpo?”.

Pois bem, eu contei tudo para ele, não consegui guardar esse segredo que poderia por terminar minha relação com ele antes mesmo de esta começar. E, eu sei que dei sorte, conheço muitas outras meninas que o contrário aconteceu, suas vidas amorosas nunca se quer “viram a luz do dia”, os caras sempre vazavam de suas vidas tão certo quanto suas menstruações mensais, não durando mais do que esse tempo mesmo, um mês, ou menos, e o fim era sempre quando a verdade aparecia, a famosa frase “sou prostituta”. Dei sorte. Vou lhe contar como foi, você será minha testemunha, e ficará tão chocado quanto eu fiquei ao ouvir a resposta de Victor e a continuidade do que sucedeu a isto. Volto em trinta minutos, vou ficar deitada com ele um pouco mais, ouvindo o som de sua respiração e as batidas de seu coração encostando minha cabeça em seu peitoral. Talvez até “brinque” com ele, hoje estou de muito bom humor e com vontade de transar, me desculpe, não vou transar com ele, vou fazer amor.

Voltei. Victor acabou de sair. Foi trabalhar, ele tinha um cliente para atender. São meio-dia. Aproveitamos muito a companhia um do outro, tomamos café juntos, rimos descompromissadamente, tomamos banho juntos também, uma experiência mágica entre tantas outras que estamos vivendo como um casal. Nunca pensei que nessa altura da vida, sentindo-me presa a realidade ao ponto de não ter expectativas para o futuro de mudança, o Destino, Deus, ou qualquer que seja a mente pensante que rege o Universo, me surpreenderia com um romance em que me sinto como uma colegial vivenciando o primeiro amor de sua vida. Faz apenas duas semanas que nos conhecemos, e tudo mudou tão rápido em minha vida, em nossas vidas. E o ápice da mudança ocorreu a três dias.

Era noite, o clima estava morno, nem quente, nem frio, mas na temperatura ideal para um passeio noturno. O ar estava adocicado no centro, não naquele estágio agridoce e enjoativo, de embrulhar o estômago fazendo com que você não queira sair de debaixo do ar-condicionado purificador de ar. Uma noite ideal para casais enamorados, e nos éramos um desses, felizes de tal maneira que as imperfeições do mundo ao nosso redor pareciam ter sumido, realmente o amor cega.

Decidimos caminhar pelas ruas do centro. E tão harmoniosa era nossa conversa repleta de assuntos que pareciam não acabar, ao ponto que caminhamos e quando nos apercebemos estávamos na Bela Vista, próximo a Paulista, então decidimos nos acomodar em cadeiras de uma mesinha de um barzinho próximo de onde estávamos. Nossa conversa continuou e Victor em determinado momento pediu ao garçom do bar que trouxesse uma garrafa do melhor vinho. Mas, não bebi uma única gota da bebida, não conseguia, tudo que eu queria era beber das palavras de Victor, beber da luz de seus olhos e do contorno de sua boca que me convidava a beijá-lo. Muitas vezes eu me perdia no que falávamos, ou melhor, no que ele falava, eu só escutava, ou fingia escutar, pois o sons que eu ouvia eram outros, uma melodia maravilhosa, festiva e alegre, que falava de mudança, de transformação, e eu me sentia uma camaleão,  mudando, me adequando, e a forma, “my true colors”, só refletiam Victor numa pintura que parecia mais um jardim de primavera, tudo em mim cantava seu nome, seu ser. A música que preenchia minha mente era algo como “Dança Diferente” da banda Maglore.

Ele falou meu nome, e eu pisquei e falei como uma boba, “Oi, do que estávamos falando?”. Ele é claro, não poderia ter tido atitude melhor, sorriu, acariciou minha bochecha parando com sua mão no meu queixo e apertando carinhosamente sua extremidade. Eu sorri e pisquei, foi aí que eu emudeci, já que logo em seguida ele falou, “bem, preciso conversar um assunto um tanto delicado com você”, e então completou sua frase com um silêncio ensurdecedor, uma pausa gigantesca que fez meu coração descer ao estômago e voltar a garganta e descer e subir de novo e de novo ao menos umas trezentas mil vezes, e então, ao fim de uma eternidade me chamou de “Amor”. Eu ganhei um pouco mais de confiança por ele ter me denominado de “Amor”, mas eu sabia, meus extintos de “mulher da vida” estouravam meus tímpanos com a fala mais terrível de todas, “ele sabe quem você é, agora só espere o fim de um algo que nem sequer havia começado, uma relação amorosa apenas idealizada, nada real, sua trouxa”, “ele só está amaciando a carne, te preparando para que não sofra tanto, mas pensa pelo lado bom, ao menos ele te tirou da rotina, isso é ótimo, por alguns dias você viveu o sonho de ser princesa, quando na verdade você sabe muito bem o que você é, uma prostituta sem direito a ser feliz, recolha-se a sua insignificância”, mas eu queria mais, como alguém que sonha algo bom e acorda no meio do sonho eu queria dormir novamente e voltar ao sonho do momento em que este foi interrompido, mas parece que não, eu estava sendo chacoalhada para acordar e viver a realidade, a mão que me balançava é cruel e implacável, a dona da mão só pode ser uma, seu nome é Vida. Mente Pensante Universal é a merda, lá no alto só pode existir um sádico, me iludiu, me deu o doce e quando o aproximei dos lábios o arrancou de minha mão.

“Eu sei que você é prostituta” – Eu fiquei em choque, paralisada “Burra, burra, burra”. “Sei desde a noite em que te vi no bar” – Agora eu creio, tenho certeza, está na minha testa “PUTA” – “E eu te amo” – e eu claro não poderia ter tido outra reação diante deste complemento de frase de Victor, resumo em uma frase da minha reação: “cara de idiota, na minha testa não mais PUTA, agora só um gigantesco painel de luzes multicoloridas piscando uma palavra que parece mais um espasmo de alguém que está sentindo as dores do infarto, “HÃ!”, eu disse.

Não compreendi nada, e nada mais importava, parei de respirar quando ele disse “Eu te amo”, eu tinha uma impressão leve, passageira de que ele disse algo antes. Então ele falou em seguida, “eu também sou” – perdi toda e qualquer compreensão da realidade, não entendi no primeiro momento o que ele queria dizer com “também sou” – é o quê, o que ele também é?” – eu pensei. “Sou G.P, um acompanhante, garoto de programa”, ele sorriu encabulado e passou a mão direita no cabelo, o copo de vinho na mão esquerda tremeu em seus dedos trêmulos, “talvez por isso que eu tenha te reconhecido como G.P também?!” – ele perguntou meio afirmando, de certa maneira muito constrangedora eu o achei fofo, e acabei sorrindo ridiculamente no que ele retribuo semicerrando os olhos e sorrindo também.

Mas, na próxima vez eu continuo o desenrolar dessa história Diário. Porém antes, gostaria que você, a eu do futuro, quando ler este diário novamente possa se lembrar desta época com paixão, lembre-se que um dia, na verdade por um tempo ainda não determinado, não vivido por eu que sou você, você viveu um conto de fadas, a gata borralheira encontrou seu príncipe, ou melhor, a gata borralheira encontrou seu semelhante, um gato de rua, tão sujo e chutado na sarjeta como ela, O Monstro, a Eva pecadora, encontrou seu Adão. E na contramão das expectativas, encontrou o amor.

Quem sabe eu não consiga fazer com que Victor comece a escrever seu próprio diário. Tem sido uma experiência ótima. E eu que pensei que seria um desastre, como sou boba, é bom aprendermos a nos conhecer, e ter a chance de na reflexão, matar nossos medos, temores e horrores.

Beijos,

Sua prostituta preferida.

 

Quem escreve:

silencio-36459

 

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